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terça-feira, 13 de setembro de 2011

São Paulo, 1999

por Emicida

HÁ ALGUM TEMPO, os bailes de rua eram comuns. Na época em que se tornaram escassos, as opções de diversão foram para mais longe de casa. Para não comprometer minha vida social, acompanhei a migração. Quando percebi, tinha virado um boêmio, e não era raro chegar em casa de manhã.

Não é sobre isso que quero falar, no entanto. O assunto é uma pessoa quase invisível: um senhor chamado Antônio Raimundo Silva. Todas as manhãs, lá estava ele enquanto eu regressava da madrugada. Sentado ao lado do balanço preso na árvore, vestindo calça social e blusa de lã, fumava seu cigarrinho de palha observando a serra da Cantareira.

Eu costumava parar ao seu lado e trocar algumas ideias. O assunto podia ser o bairro, a vida na cidade, sua infância. Falávamos sobre tudo, até que o sono viesse me chamar e eu subisse para concluir meu caminho.

Sua voz rouca e cansada repetia todo dia o mesmo cumprimento, na hora do encontro tanto como na da despedida: "Antônio Raimundo Silva, às ordens". Na hora de me despedir, achando aquilo meio estranho, eu dava um simples "tchau".
(A cidade rouba nosso coração, esconde no meio da fumaça. E sabe por onde ela começa? Pela nossa educação. É o primeiro prato a ser devorado. Quando você nota, já não tem mais nada além de saudade.)

Depois da nossa conversa, lá ia ele descer a rua de terra, como se só estivesse ali para me aguardar, todo sábado. Eu subia para casa pensando em mil coisas e me perguntando: "Pra que ele se apresenta sempre? Que falta isso faz?".

Ao ouvir cada novo "às ordens", eu ria, como se aquilo tivesse graça. Antônio contava coisas sobre sua vida, abria o coração e falava, falava e falava mais. Com a passagem das semanas, a duração da conversa ia se estendendo. Eu também comecei a me sentir mais livre para falar da minha vida -afinal, contar o seu passado a alguém é querer fazer essa pessoa se sentir em casa ao seu lado, saber bem o solo que está visitando. Me sentia na obrigação de contar parte da minha vida a ele também.

Ali com ele, aprendi que a Cantareira se chama assim porque os antigos trabalhadores da região guardavam água em cântaros.
Ele também me ensinou atalhos para chegar às cachoeiras existentes e mostrou que ouvir é muito mais importante do que falar. Ah, sim, e também descobri, graças a ele, que Adoniran Barbosa nunca morou no Jaçanã.

Numa certa manhã de sábado, na subida da volta para casa, não o encontrei. Sentei então no banco ao lado do lugar dele e esperei. Pensei em assuntos para conversar, involuntariamente o condenei por estar atrasado ao nosso encontro. Olhei pela rua de baixo, esperei mais, até desistir e subir a rua. Merda! Havia me desencontrado dele, e nosso compromisso semanal estava cancelado.

Foi aí que me dei conta de uma informação básica: embora morássemos no mesmo bairro, eu não fazia ideia de onde ficava a casa dele, de quem eram seus parentes -não sabia nem mesmo se ele tinha parentes ali. Era tudo uma incógnita. Aquilo me deu uma sensação de vazio, quase como se ele fosse uma miragem.

Passaram-se umas três semanas; em mais um regresso matutino, passei pelo balanço vazio sob a árvore, ninguém olhando para serra e para o bairro.

Até que uma tarde, numa conversa de bar, disseram sem mais detalhes que ele havia morrido. Comentavam sobre um tal de seu Raimundo, aquele que teve um piripaque e caiu duro no chão.

Fiquei chocado com a notícia. Voltei desolado para casa, como se tivesse perdido um parente próximo, um amigo de anos, alguém muito especial.

Sentado no banco de seu Antônio na manhã do sábado seguinte, observava a serra e o balanço antes de encarar o alto das montanhas e perceber: aquele "às ordens" fazia tanta falta...

(texto de Emicida públicado 24/07/2011 na Folha de São Paulo no caderno Ilustríssima)